domingo, 30 de março de 2014

Síncope



Meia noite.
As coisas passaram.

Como antes
como ontem
como vida oculta.
Sem mágica
ou desprezo.

Nem superior ao mundo
nem desprezível aos homens.
Com os pés firmes
longe do chão.

Tudo é próximo da memória
e de lugar nenhum.
Tudo tem sabor de passado
uma ausência doce
e branca
e sigilosa.

Meus ídolos morreram lentamente.
Viveram muito?
Viveram pouco?
Que diferença faz
eles morreram.

Quando achei que seria impossível continuar
uma saia rosada
multiplicou a aurora
e um novo jardim
sem flores
de matéria e língua
preveniu meu encanto
de recompor o esquecimento.

A primeira namorada
o primeiro emprego
a primeira provocação da marcha:

" Vencer no mundo
é superar as palavras".

O esquecimento virou passeio noturno.
O que desconheço em mim
é herança que devora
mesa farta
medo do escuro.

As coisas mais próximas
estas sim
morreram.

Eu volto para casa
com a urgência da noite
com uma solidão recuperada.

Das cinzas
o suspiro
é tempo de amar
de voltar para casa
de novo
de conduzir todo enigma
e continuar.

É tempo de alcançar o sol
de beber água dos subterrâneos da Terra.
A escuridão se estende
depois
perde o fôlego.

Lembre-se apenas de não aplaudir no final.
E continuar.


quarta-feira, 26 de março de 2014

85/95


" Para se aposentar, no caso da trabalhadora, ela precisa somar 85 anos entre idade e trabalho, o trabalhador 95".


É o médico. É a perícia.
Consolo do estado
agressivo. Cão pastor e antítese do juramento.
Profissional de fúria e serpente da ordem.

De parecer médico que devora
vinga o patrão-estado
de "preguiçosos".
Galopa em inocentes com pólvora na língua.

É o médico. É a perícia. Uma vida (?).
Ele morde, é áspero. Enche o patrão-estado de orgulho.
( Não existe doença se é o trabalho que adoece.)
A veia do pescoço salta. É a humanidade em garras do arcanjo da tirania.

É o médico. É o abono do final do mês.
Ele recebeu ordens.
Saboreia como um guloso em um banquete
a satisfação de cumpri-las.

É perícia. O trabalho, o médico
estupram a vida
do trabalhado cansado.
É crime aposentadoria, ser bem tratado?

O trabalho não muda.
Mas, novos remédios
são aprovados cientificamente
em congressos médicos no Caribe.

A saúde é verbo clandestino.

A professora, e sua altura da Educação dos Homens
não exigia nada além da recompensa do tempo.
Entretanto, para o médico, doença e aposentadoria: frescura.
Basta voltar ao trabalho.

Espreme o médico a caixa da produtividade.
Ele é duro como um abraço vazio
e desfila seu orgulho presunçoso
entre soldados, burocratas e urubus.

Defende o médico-perito ( médico!)
uma pátria em trevas
da espessura do CID e DSM
prontos para castigar em nome da cura.

É o trabalho. É o médico.
É o infarto dele.
Morreu.
Morreu da perpétua essência da arrogância.

A professora ainda brilha
no caminho daqueles que fez luz e sonho.
No território da memória
heróis não se aposentam oficialmente.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Uma ode para a laranja do quintal da Vó

Para algumas coisas existe a morte. 
Para todas as outras coisas: memória. 


Quando escrever não basta
viver é uma aventura ao abrigo das palavras.

A geografia de Faetonte
 estudo do solo que renova o dia
é descobrimentos do Universo em gomos.

Descobri que neste chão
está plantado o amparo à miséria humana.
No quintal desta galáxia
nasceram as laranjas.

Acidez simples
de folhas bem cortadas
é de onde vejo o sorriso cítrico de Deus
semeando este quintal.

Afofou a terra
lapidou o terreno
e as laranjas
gotejaram aos homens
o signo da coragem para toda bem-aventurança.

Levantou o olhar triste dos homens
para o amanhecer de mundos.

Emissária das línguas do Céu
és tu vozinha 
dona das mãos que arrancaram o rancor 
transcendendo em candelabro de amor
 ao peito dos filhos desta terra.

Da reinação do teu sorriso
abre-se em valentia e ternura:
E se todas as coisas do mundo
não fossem feitas para lhe dar medo?

As laranjas do quintal da Vó são a travessia
o medo é mar. 

quarta-feira, 19 de março de 2014

Assim vão os pássaros



Sem nome. Aquarela- Karola Braga

Assim vão os pássaros
secretos
como um beijo n´alma.

Voam os pássaros
alto
em estado de poema:

o pouso espera
o beijo volta.
O azul é enredo

canta, encontra, encanta.
Como ouvir?
O amor sempre volta à sua casa.


segunda-feira, 17 de março de 2014

Poema 12


Como escrever um poema
ao som da sua boca?

Quanto de você cabe em meu peito?

Longe de você
há brisa que guarde o sono?

É seu abraço o que reduz o múltiplo à unidade?

São suas pernas
a marcha rumo às alturas?

É sua língua fome e sabor das melhores coisas?

Sua beleza é a invenção dos dias
e meu silêncio, suspensão de respostas.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Esquina e honra


Voltemos ao tempo:
antes da organização selvagem das prateleiras
antes do cortejo dos uniformes a bater o ponto
antes da vaidade a escrever estes versos.

Em algum lugar deste intervalo
o vento implode micro-crateras no céu.
Depois
a chuva,
consolo à aridez humana,
estoura um novo rastro de destino
sentimento linear de um trem nas alturas.

O fim do ciclo é nascimento.

Do solo, a proteína
dos vegetais, a paz.

A fome da vida
é saber que ela é universal como um grão de arroz
e tudo que queima
vira lembranças
dispositivo de inaugurar nações e despedidas.

O horror foi inaugurado.

Da barriga das cidades
o rio canalizado não encontra o mar.
De toda eletricidade que pensa
escapa o mais importante:

O tempo é um gigante cínico
que sorri
enquanto corremos dele.
Quanto mais corremos
mais forte ele fica.
Quanto mais despedaçados ficamos
mais pedras de solidão ele joga.

Pelas ruas de neon
onde o céu não alcança os passos
todos dormem.

Pela televisão
todas as histórias brotam nos quartos.
Pelos carros
todos sonham aos gritos
e entopem as veias das cidades.
Todo dever religioso
é um beijo de boa noite das novelas.

Voltemos ao tempo
em que o céu
era apenas compromisso de baleias
e micro-crateras.
Não de aviões. Não de trânsito aéreo.

O tempo
anuncia com erotismo
com crueldade
com açúcar refinado
e muita gordura:
Com excelência e ganância
o futuro será
o presente do arrependimento.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Poema 14


A esperança é um terreno
que os homens guardam na alma,
em ponto de flor
primavera e alegria,
a hora que integra corpos e distâncias.

É uma voz doce aos ouvidos
que não se curva
a reinados
e diplomacias fúnebres.

A esperança é a fé que desceu do céu.
Dobrou homens e orgulhos
salgou a certeza
inundou os pântanos de Galileu
e devolveu perguntas virgens  aos homens
reféns do cotidiano.

Eu vejo dor em seus olhos
mas a esperança levará suas lágrimas
por caminhos
ainda desconhecidos.

Não chore.
Sempre há curvas
e novas estradas
para quem pisa a terra
com pés de graça
e sorriso de traduzir mundos
explodindo como um impulso maior
de realização.

Não chore.
A esperança não cabe em escritórios
não foi feita na China ou Manaus
não tem palavras sujas de sangue
não é vocabulário castigado pelas cifras das cidades.

A esperança é a substância
dos sonhos encontrados:
encontros.

sábado, 8 de março de 2014

Epiderme do sol

Para: 
O Sol Maior: Vó Philomena
A epiderme do Sol: Emília
A sementinha de Luz: Mayra
A lembrança que me compõe: Vó Nair


Foi com você que adquiri
um toque de tempo.

Ao plantar girassóis
que nasciam maduros

o chão antes da terra
falava e sorria:

O que brota da terra
são recomendações do Sol maior.

A velha casa
renasce e guarda

a velha mesa
é mesa farta

o velho pão
é sintaxe dos homens

o velho Amor
trabalha e crê.

Foi com você que aprendi:
voltar à terra

é ouvir para dentro.
Plantar girassóis.