terça-feira, 12 de março de 2013

Ficções que curam



No banheiro meu olhar era a alma do espelho. O barulho da torneira e o som incongruente que não passava pelos sentidos mostrava que ainda estava vivo e triunfante ao abrigo da fantasia, a única realidade que me ultrapassa e me resgata. 

O Céu estava baixinho e ao alcance dos meus olhos. Ouvia-O rezando caridades ao solo dos homens e tamanha piedade por nossa condição, fez com que a  bananeira do quintal ensaiasse as primeiras mudas, após um longo tempo de estiagem.  Será toda Realidade que chovia ou o Céu que lastimava em prantos pelos pecados dos homens sem O entender? Onde poderia caber tanta ambiguidade? Não bastassem as rosas coloridas no jardim, eu ainda queria explicação para tanto?

Abençoava a pele tostada do pão com margarina saboreando as lembranças dentro de um curto espaço de pensamento. O café, solução para noites bem dormidas, aliviava a pressão que era iniciar mais um dia. Entre tantas alegorias, não havia tempo para fingir ser feliz ou acariciar o semblante amargo das tristezas. Eu precisava me abrigar no manancial em que tudo poderia ser a gênese da reintegração, a sabedoria que reside na santidade esquecida.  Fui lançado ao mundo como um ser inteiro e quando caí me despedacei. Entretanto, senti que seria preciso recolher os cacos e constituir meu triunfo! 

Passei anos constituindo uma imagem do eu-vazio e meu único medo era não saber fechar os olhos. O silêncio pode sustentar a salvação. Descobri isso ao entender que o esplendor de se sentir vivo é meditar; entendimento que brota das raízes rudimentares e evolutivas do homem. 

Escolhi aquele emprego que me tomava as manhãs,as tardes e os pensamentos. Todo dia não era só mais um dia porque tinha o dia do final do mês.
Nunca quis senão o que quiseram por mim e o mundo poderia ser redondo ou quadrado que não saberia me diferenciar de um rinoceronte ou de uma vaca. Eles são inconscientes quanto aos desejos e eu quanto aos impulsos. Estava tão dócil como um cachorro que perdeu seu instinto e hoje ao comer comida enlatada, permanece indiferente à sua natureza. Não me reconhecia quanto ao mundo, e por mais que odiasse aquele trabalho, aquela rotina, nunca suspeitei o porquê da vida se resumir em 8 ou até 13 horas diárias. Estava adestrado e sem desconfiança. O tempo era curto demais, o dia era longo demais.

Lembro-me de quando meu filho nasceu. 

Por conta das reuniões “inadiáveis” contratei um profissional para acompanhar minha esposa aos exames. Batalhei para conseguir um convênio médico que resguardasse minhas inquietações por não estar com eles. Aquela tinha sido uma batalha solitária, mas o antigo chefe do RH devia um favor para mim e contanto que eu ficasse de boca fechada, ele faria a alteração do plano “ só para mim”. 

Eu sei que o Sindicato deveria ficar sabendo e aquela ser uma conquista de todos, eu sei. Mas eu não conseguia pensar em nada além de mim. Uma semana antes do nascimento fui convocado para uma reunião “inadiável” em uma das 13 filiais da empresa, mais especificamente em Recife. Na época, o RH da empresa entoava como mantras que o objetivo de cada um era vestir a camisa de empresa e que o setor estava ali justamente para valorizar e reconhecer os talentos individuais. Fizeram com que eu me sentisse tão importante com tudo aquilo que resolvi ir à reunião. Voltei da reunião e meu filho estava fora da barriga, há 15 dias! 

A pauta da reunião centrava-se em abordar a redução de gastos e medidas administrativas. A primeira alternativa a ser tomada foi a terceirização dos funcionários. Alguns dias depois eu estava no RH, rodeado pelas  mesmas pessoas que pediram para eu vestir a camisa da empresa. Agora elas estavam rasgando a camisa, a minha camisa. 

Descobri o meu valor como o sol que tem a escuridão no encalço. (A burocracia é a face que sorri com os dentes do demônio.)

Recordar e renascer: era preciso. 
 
Adormeci logo que cheguei em casa. Meu corpo estava vivo e florescente. Reconheci no ar o suspiro da perfeição e nas pequenas coisas o prodígio de pertencer a si mesmo.
Estava nu em tempos de guerra. Minha alma estava perdida, mas lúcida de que em apenas um lugar não haveria de encontrar  o retorno à súplica dirigida ao Senhor dos Céus. A sabedoria não reside na autocompaixão e sofri até entender que o recomeço é sempre um bom lugar para se visitar.

A dificuldade é a esquina de uma avenida maior chamada Vida.

Adormeci profundamente.

Reconheci o sono, o sonho e a urgência.

No dia seguinte após o café preto (plenitude do mundo) e o pão com margarina na chapa (guarda-roupa de sabores) pensei: como deve ser serena a condição de olhar para trás e ver que a vida não sobrou.

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